Um novo ciclo para a indústria automotiva

Regime amplia os investimentos das montadoras locais, atrai novos fabricantes e cria bases para uma política de inovação.

Desde o início do ano, a montadora japonesa Nissan vinha ganhando participação no mercado brasileiro de automóveis. As vendas mensais chegaram a 9,4 mil veículos, e em agosto ela conquistou uma fatia de 2,42%. Em setembro, as vendas caíram para menos da metade, e sua fatia no bolo das vendas de automóveis diminuiu para 1,36%. Problemas com o produto? Não. Simplesmente a empresa esgotara naquele mês a cota de veículos que podia importar do México, sem pagar a alíquota adicional de 30 pontos percentuais no IPI. O March, um modelo compacto que vendeu 2,4 mil unidades em agosto, teve apenas 268 veículos faturados em setembro. Ao preço de R$ 24.990, é um sucesso nas concessionárias, que não venderam mais porque não tinham estoque. 

 
Nesse caso, a Nissan deixou de importar para não perder dinheiro. “Foi um mês de transição por conta da nova realidade do mercado e da falta de carros”, disse o presidente da Nissan no Brasil, Christian Meunier, que comanda um investimento de R$ 2,6 bilhões numa segunda fábrica, em Resende, no Rio de Janeiro. “Esperamos que, a partir de outubro, nossos volumes se recuperem.” A retomada almejada por Meunier, assim como pelos comandantes de suas concorrentes que atuam no Brasil, ficou mais fácil de ser alcançada desde quinta-feira 4, com a publicação de um decreto que vai modificar completamente o funcionamento e as regras do setor automobilístico a partir do próximo ano. 
 
A nova lei pretende ampliar a participação das montadoras locais na produção mundial, deixando para trás o status de meras fabricantes para assumir o de centros globais de desenvolvimento de novos produtos. O plano do governo é cobrar menos imposto das empresas que investirem em pesquisa e desenvolvimento, produzirem carros mais econômicos e comprarem insumos de fabricantes brasileiros. A participação de peças nacionais terá que subir gradualmente, até 2017, dos atuais 45% para 70%. Mesmo tendo de desembolsar mais recursos para adaptar-se às novas regras, as montadoras apoiaram de forma unânime o acordo, cuja redação final contou com a participação dos empresários do setor. 
 
Foram necessárias mais de 30 reuniões até que se chegasse a um consenso. A maioria dos encontros aconteceu na sede do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) em Brasília. Nas reuniões, a tônica principal era a fórmula ideal para ampliar investimentos em inovação e a adequação do carro brasileiro a parâmetros internacionais. “É um regime transformador, uma política de longo prazo que vai atrair investimentos em pesquisa e tecnologia no País”, diz Cledorvino Belini, presidente da Fiat e da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), que revisou para cima o plano de investimento das montadoras para os próximos cinco anos. 
 
Em vez dos US$ 22 bilhões previstos inicialmente, entre 2013 e 2017, serão US$ 30 bilhões para o período. O novo acordo pretende atrair, principalmente, os centros de pesquisa de empresas que hoje apenas vendem seus carros no mercado brasileiro, motivando-as a investir em inteligência local que seria exportada aos quatro cantos do planeta, sob a forma de novos produtos e serviços. Para se adequar, as montadoras terão de aplicar pelo menos 0,5% do faturamento em pesquisa e desenvolvimento, e 1% em engenharia de produção. Precisarão, também, reduzir o consumo de combustíveis em 12%, produzindo carros com autonomia de 17,26 quilômetros por litro de gasolina e 11,96 quilômetros por litro de álcool em 2017. 
 
Quem equipar seus veículos com motores mais “verdes”, poderá, ainda, abater até dois pontos no IPI. “Queremos colocar o Brasil definitivamente na rota da tecnologia”, diz o ministro do Desenvolvimento, Fernando Pimentel. Ao anunciar as novas regras, no auditório do Ministério do Desenvolvimento, ao lado dos ministros da Fazenda, Guido Mantega, e da Ciência e Tecnologia, Marco Antonio Raupp, Pimentel lembrou que já existem ao menos R$ 5 bilhões em novas fábricas cuja construção já foi decidida. Além da Nissan, ele se referia às chinesas JAC Motors e Chery e à alemã BMW. Outros R$ 3,5 bilhões podem ser investidos por fabricantes de caminhões. 
 
Durante anúncio oficial do novo regime, na quinta-feira, Belini, da Anfavea, sentado na plateia do auditório do ministério, deixava clara a satisfação com a nova regulação, elaborada para incentivar a produção nacional e reduzir a concorrência dos carros importados. O foco em inovação traz uma oportunidade inédita ao País para concentrar energias onde lhe falta competitividade. A falta de investimento em pesquisa é o calcanhar de aquiles da indústria brasileira e, ao que tudo indica, o novo acordo automotivo começa a mudar esse vetor. “O Brasil já é um mercado maduro, e por isso temos de investir em tecnologias de produção, tornando a manufatura mais tecnológica e automatizada”, disse à DINHEIRO o presidente da Ford no Brasil, Steven Armstrong. 
 
"Mais do que isso, ter uma meta clara a ser perseguida facilita o percurso. “As montadoras agora têm um norte”, afirma Vagner Galeote, diretor de manufatura da Ford. “A segurança de que as regras não vão mudar nos próximos cinco anos é o principal avanço da nova lei.” O vice-presidente da Toyota, Luiz Andrade, também aprovou a nova fórmula. “A dimensão do mercado brasileiro justifica termos uma indústria mais competitiva”, diz Andrade. Quarto maior mercado consumidor e sétimo maior fabricante do mundo, com a produção de 3,4 milhões de automóveis ao ano, o Brasil está atraindo um número importante de montadoras, principalmente as asiáticas, dispostas a “pagar o tíquete para entrar na festa”, como foi definido o novo regime pelo secretário-executivo da Fazenda, Dyogo Oliveira. 
 
A JAC Motors, por exemplo, que atualmente importa veículos da China, anunciou a retomada do investimento de R$ 900 milhões para erguer uma fábrica no Polo Industrial de Camaçari, na Bahia, onde deve produzir 100 mil unidades ao ano a partir de 2014. “O investimento estava suspenso esperando o decreto, mas agora já podemos continuar”, afirmou Sérgio Habib, presidente da empresa. Habib, que esteve em Brasília para testemunhar o anúncio, tomou o primeiro avião para Salvador, para anunciar oficialmente a nova fábrica, na própria quinta-feira, ao lado do governador Jaques Wagner. Com a nova legislação, as montadoras que estiverem construindo suas fábricas poderão importar uma cota de 25% da produção estimada para 2014 sem pagar o IPI adicional. 
 
Sobre outros 25% terão créditos tributários. Mais adiantada que a JAC, a também chinesa Chery, que está construindo uma planta fabril em Jacareí, no interior de São Paulo, também dependia das novas regras para retornar ao nível de vendas de 2010, que caiu pela metade após o aumento de 30 pontos porcentuais do IPI, em vigor desde dezembro do ano passado, para os carros importados. O investimento de R$ 800 milhões, em andamento, inclui um polo de pesquisa e desenvolvimento para atender a toda a América do Sul. Da fábrica brasileira devem sair veículos para o Chile, Venezuela, Argentina e provavelmente o México. “O Brasil caminha para ser um polo tecnológico”, diz o presidente da Chery, Luis Francisco Cury.
 
Os novos anúncios não param por aí. A chinesa Foton, uma das maiores fabricantes de veículos utilitários do mundo, anunciou que investirá US$ 300 milhões até 2017 para produzir caminhões no País. “Já estamos atrás das licenças ambientais e do melhor terreno para nosso projeto”, diz Osmar Hidalgo, CEO da Foton Motors do Brasil. A alemã BMW e a britânica Land Rover aguardam o momento certo para fazer anunciar suas fábricas locais. Mais do que uma planta industrial, as novas montadoras devem atrair consigo sua cadeia de fornecedores, como aconteceu com a coreana Hyundai, que acaba de construir uma fábrica em Piracicaba, no interior paulista, onde começou a produzir o HB 20. 
 
O modelo foi desenvolvido na Coreia por técnicos de vários países, incluindo brasileiros. Nove fabricantes de autopeças já se instalaram em Piracicaba para abastecer a linha de montagem. O representante dos fornecedores da Hyundai, Alex Kwon, CEO da consultoria empresarial Kobis, acredita que o novo regime vai incentivar outras indústrias de pequeno e médio porte a montar suas linhas de produção no novo polo automobilístico para adaptar-se às novas regras. Para a indústria de autopeças, um setor que movimentou R$ 91,5 bilhões no ano passado, o incentivo veio em boa hora. “Até que enfim temos uma política industrial”, afirma Besaliel Botelho, presidente da Bosch (veja reportagem aqui). Desde janeiro as vendas do setor vêm caindo e em julho a redução em relação ao mesmo mês do ano passado foi de 15,5%. 
 
“Quando um doente está na UTI, não adianta dar aspirina”, diz Botelho. Ele admite que hoje o setor não é competitivo, mas acredita que o quadro será revertido em dois anos, com o novo regime. Alguns críticos, entretanto, avaliam que o governo seguiu uma lógica maquiavélica, pela qual os fins justificam os meios, para chegar ao novo regime. As cotas de importação do México, estabelecidas em março, e o aumento de 30 pontos do IPI aos importados, desde dezembro do ano passado, teriam criado um cerco protecionista que foi questionado na Organização Mundial do Comércio (OMC) na semana passada, pelos governos japonês e americano. Para evitar questionamentos, porém, o governo elaborou uma tabela progressiva de descontos para quem investir no desenvolvimento de tecnologias. 
 
“O decreto é inteiramente compatível com a OMC e com outros compromissos internacionais”, disse Pimentel, contando que a nova legislação foi elaborada em conjunto com o Ministério das Relações Exteriores. Para as empresas que já apostavam no mercado brasileiro, antes do regime, como a Ford, Fiat, GM, Volkswagen e Toyota, entre outras, o horizonte não poderia ser mais positivo. “A principal vantagem do novo regime automotivo é a visibilidade para planejar para os próximos anos”, diz Meunier, da Nissan. “Estamos aqui para ficar e nos tornar um competidor-chave no mercado brasileiro.” A exemplo da Nissan, há muito mais gente pensando o mesmo, disposta a aproveitar o novo ciclo que se abre na indústria automobilística brasileira.
 
Por Denize Bacoccina, Guilherme Queiroz, Fernando Teixeira e Rodrigo Caetano/ Istoé Dinheiro

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