Impactos da crise na América Latina

Crise não afetará o continente de maneira estrutural, como acontecerá nos EUA


O Brasil será o principal mercado para os países latino-americanos dentro de pouco mais de uma década. A crise terá ainda grandes impactos no continente, mas não o atinge de maneira estrutural, como ocorre com os Estados Unidos. Naquele país, o colapso econômico é apenas uma expressão de uma crise social muito mais grave.

Essas são algumas das análises feitas pelos participantes do seminário Crise Econômica Mundial: Impactos na América Latina, na quarta-feira (25/3), em São Paulo. O evento, realizado pela Fundação Memorial da América Latina, integra a programação cultural e acadêmica que comemora os 20 anos da instituição.

De acordo com o embaixador Rubens Barbosa, atualmente consultor de negócios, a crise deverá aumentar a defasagem entre a economia do Brasil e dos outros países da região.

“Dentro de 10 a 15 anos, o Brasil – e não a Europa ou os Estados Unidos – deverá se tornar o principal mercado para os países latino-americanos. Por outro lado, nós teremos uma economia que irá extrapolar a região. O Mercosul, por exemplo, ficará pequeno demais para o Brasil. Para nós, as relações com os países desenvolvidos ficará mais importante”, disse à Agência FAPESP.

Segundo ele, o Mercosul, que já representou 15% do comércio nacional e hoje não chega a 9%, deverá ficar ainda mais esvaziado. “Com a complexidade do comércio internacional, a globalização e a sofisticação do comércio, a tendência é que os produtos dos países da região – a maioria tem apenas um ou dois – sejam absorvidos pelo Brasil, que é um mercado muito mais próximo, onde eles serão mais competitivos do que se forem exportar para o resto do mundo”, disse.

Mas por enquanto, para Barbosa, o continente sofrerá forte impacto da crise, que ainda deverá piorar muito. “A crise tem intensidade, abrangência e duração que não podemos prever. Mas podemos imaginar que a economia implicará crescimento zero. Cada ponto percentual de queda do PIB dos Estados Unidos equivale a uma redução de 0,25% no PIB da América Latina, em média”, disse.

Com a crise, afirmou o embaixador, as relações bilaterais sofrerão com um possível acirramento das disputas políticas e comerciais, com a queda do preço de commodities e com a alta do petróleo. “Os países da região vêm de um período de fundamentos macroeconômicos sólidos e de crescimento sustentável. Agora o continente está vulnerável, não só pelo fim do crescimento, mas pela taxa de juros alta”, afirmou.

Diagnóstico difícil

O presidente da FAPESP, Celso Lafer, que coordenou a mesa-redonda “A crise e as Relações Exteriores na América Latina”, destacou a dificuldade para lidar com a incerteza provocada pela crise. “O imprevisto é diferente da incerteza. Essa é uma crise de confiança, o que provoca um contexto de incerteza. Por isso há uma dificuldade sem precedentes para se lidar com ela”, disse.

Lafer afirmou que a incerteza leva à imobilidade, à medida que dificulta as análises lúcidas sobre a conjuntura. “Não sabemos como reagir, nem de que maneira operar. Não existe uma forma nítida de consenso entre os analistas. A situação econômica gerou uma crise de confiança no sistema financeiro. Com isso, o crédito e o débito deixaram de ser conceitos claros – os mecanismos são tão complicados que não se sabe quem é credor e devedor”, afirmou.

Para Carlos Antonio Luque, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (USP), um fator que dificulta as análises é que os economistas, em geral, não estudam crises econômicas, mas se dedicam a investigar as virtudes do sistema econômico estável.

“O mainstream da teoria econômica parte do pressuposto de que os agentes econômicos são racionais e que a crise é uma anomalia. Por isso, todos preveem um 2010 melhor. Essa postura condicionou a regulação e as políticas dos governos para lidar com a crise”, disse.

No entanto, alguns analistas ligados ao mercado financeiro, segundo Luque, reconheciam sintomas de instabilidade no mercado desde meados da década de 1990. “Havia um crescimento econômico intenso e, como sabemos, tudo o que sobe desce. O crescimento dos preços das ações mostrava que estávamos saindo de uma base real”, apontou.

Segundo ele, as análises mostravam que o Brasil estava, a princípio, mais bem preparado para enfrentar a crise que outros países, por ter bases macroeconômicas muito sólidas, com boas reservas e contas públicas sadias. Mas a queda do PIB no último trimestre, mais acentuada que em outros países, desmentiu essa tendência.

“Embora os governos criem políticas para aumentar o crédito, as incertezas impedem que as pessoas peçam empréstimos. Os bancos sabem que não têm informação privilegiada. Então, no momento de crise, trancam os empréstimos além do necessário. Com redução dramática do crédito, a crise se aprofunda ainda mais. Nesse contexto, o livre comércio internacional se torna mero discurso e os países adotam medidas protecionistas”, afirmou.

EUA: crise social

Para o sociólogo Sedi Hirano, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e membro do Conselho Superior da FAPESP, a crise mostra que não existe mais separação nítida entre a economia financeira e a economia real.

“Vemos que não há mais uma autonomia entre o capital produtivo e o capital financeiro. A crise unificou as economias. Entre os países que mais perderam PIB estão os países da Ásia, que produzem para exportação. No Brasil, onde as exportações não chegam a 20% do PIB, mas o setor financeiro está entre os mais sólidos, a crise também está chegando com impacto”, disse.

Segundo ele, por apanhar em cheio os produtos primários, a crise afeta seriamente o continente latino-americano. “Com isso, a própria América Latina deverá se consolidar como um grande mercado para a exportação brasileira. Além disso, vamos voltar nossos investimentos para o espaço regional. Grandes capitais brasileiros já estão sendo investidos na Argentina, no Uruguai, na Bolívia e na Venezuela”, destacou.

Para o embaixador Carlos Henrique Cardim, a crise é um exemplo do conceito de “anomia”, criado pelo sociólogo francês Émile Durkheim no século 19 e aplicado, em meados do século 20, pelo sociólogo norte-americano Robert Merton. Segundo Merton, a anomia é um dos principais males da sociedade norte-americana, que deriva, curiosamente, de uma de suas maiores virtudes.

“Anomia é um estado de falta de objetivos e perda de identidade causado por um brusco rompimento com valores tradicionais que gera um sentimento de vazio e leva a uma conduta desviante, com as pessoas agindo fora de sua própria realidade. É exatamente o que ocorreu nos Estados Unidos”, disse.

Para Cardim, a crise é muito mais profunda do que se imagina, por ser a expressão econômica de um fenômeno sociológico mais profundo e sério. Segundo ele, o fundamento social da crise se dá em função de uma pressão social que leva os cidadãos a querer consumir acima de suas possibilidades, endividando-se.

“Quando as pessoas querem atingir objetivos socialmente consagrados, como progresso material, prestígio e poder, no menor espaço de tempo, com o menor esforço possível, estamos falando de anomia. O sucesso econômico é um objetivo muito bom, em si. Mas quando não se tem um quadro institucional organizado para lograr esse objetivo, temos uma disjunção, uma quebra de normas, uma situação de vale tudo. Situações fora da realidade se tornam rotina”, afirmou.

Estruturas intactas

Para o embaixador Rubens Ricúpero, a grande discrepância entre as previsões dos economistas são um sintoma da gravidade da crise. Um balanço da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), em novembro, por exemplo, previa um crescimento de 1,9% na América Latina no fim de 2009.

“A última previsão feita pelo banco Morgan Stanley, em 16 de março, indicava uma contração de -4,3%. Uma discrepância de tal dimensão em tão pouco tempo não é normal. Isso só ocorre em crises muito graves”, afirmou.

Segundo Ricúpero, não existem evidências científicas para qualquer tipo de conclusão sobre a crise. “Ninguém tem respostas para três questões básicas: O pior já passou? Quando vai começar a recuperação da economia? Como vai ser a velocidade e a profundidade dessa recuperação?”, avaliou.

O embaixador disse preferir as avaliações dos grandes organismos internacionais, que pressupõem que os pacotes anticrise dos governos deverão, a princípio, permitir a recuperação das economias, senão no fim deste ano, ao longo de 2010. “Mas isso é uma esperança, não uma previsão”, disse.

Segundo ele, uma das diferenças da crise atual é que a América Latina, desta vez, não é “exportadora da crise”. “A crise aqui tem um caráter cíclico. É um efeito do que acontece nas economias centrais. Mas não temos uma crise estrutural, como nos Estados Unidos, onde todo o mercado financeiro está mais ou menos comprometido e há dúvida considerável sobre a solvência do sistema bancário. Na América Latina os bancos estão intactos”, disse.

Na economia norte-americana, de acordo com Ricúpero, há outros setores que dão sinais de crise estrutural, como o automobilístico. “Mais uma vez, nada parecido com a América Latina. Aqui não temos setores estruturalmente inviabilizados pela crise. No entanto, vamos importar a crise pelos canais do comércio e das finanças”, disse.

Segundo o embaixador, a América Latina aproveitou bem o período de “vacas gordas” da economia mundial, entre 2002 e 2008, acumulando reservas que dão boas possibilidades de ação contra a crise.

“Além das reservas confortáveis, no Brasil temos espaço para uma política monetária: podemos baixar bem os juros, embora o governo ainda esteja tímido para usar essa arma. Há instrumentos. A crise aqui não é de natureza estrutural. Podemos ter perspectivas razoáveis de que a crise seja limitada, se a economia se recuperar até 2010. Se não se recuperar até lá, no entanto, essa munição terminará”, disse.


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