Automóveis – a revolução silenciosa da Engenharia brasileira

* O setor automotivo brasileiro, nos seus cinqüenta anos de existência no país, já passou por altos e baixos. Agora está numa boa fase, mas poucos perceberam que ela é muito melhor do que parece.

Desde os anos 50, no governo de Juscelino Kubistcheck que construiu Brasília e iniciou a industrialização do Brasil, carros e caminhões eram fabricados no país a partir de projetos vindos de fora.

Em geral eram modelos já fora de linha nos EUA ou na Europa que vinham ganhar sobrevida aqui. Como o Opala ou o Fusca, este criado por Ferdinand Porsche na Alemanha na década de 30 e fabricado no Brasil de 1959 a 1986, com grande sucesso. Com raras exceções, nossos automóveis eram as “carroças” do presidente Collor no início dos anos 90.

Já tivemos outras fases de “booms” de produção, vendas e exportações (estas agora só não estão maiores por causa da taxa de câmbio desfavorável), mas na fase atual temos uma grande novidade: vários desses carros que estão sendo fabricados aqui, vendidos e exportados, foram criados, projetados e desenvolvidos aqui mesmo no Brasil, por engenheiros brasileiros.

São automóveis com “DNA brasileiro” andando no mundo inteiro. Por exemplo, a General Motors do Brasil criou a Meriva, que já estava rodando aqui quando foi lançada na Europa. O Ecosport, da Ford, é outro que saiu da cabeça de engenheiros brasileiros, assim como o Fox, da Volkswagen.

A General Motors do Brasil, aliás, há dois anos tornou-se um dos cinco centros mundiais de desenvolvimento de veículos, ao lado dos EUA, Alemanha, Austrália e Coréia. A tecnologia dos veículos “flex-fuel” é brasileira e está sendo centro de atenções do mundo todo.

Por que é tão importante termos o projeto brasileiro?

Uma razão é emocional, claro, a nossa auto-estima sobe ao saber que um americano, ou um alemão, ou um japonês vai escolher, comprar e dirigir um carro criado e feito por brasileiros, ao invés do contrário. Deixamos de ser apenas o país do futebol, carnaval e mulatas. Mas mais importante do que isso é que o Brasil deixa de ser apenas um mercado passivo e passa a ser um participante ativo no cenário global, colocando sua Engenharia e seus engenheiros ao lado dos mais avançados do mundo.

Além disso, de um ponto de vista mais macroeconômico, o Brasil tem 24 montadoras e 468 empresas fornecedores de autopeças. Se o centro de projeto de uma montadora está no Brasil, é maior a possibilidade de participação de fornecedores locais na criação de um novo veículo e no fornecimento de peças para sua fabricação no mundo inteiro, gerando empregos e recolhendo impostos aqui mesmo. É importante lembrar que mais de 60% daquelas 468 empresas, pelos dados do Sindipeças, têm capital nacional.

Entretanto, a situação de agora não é uma conquista acabada. Estamos num bom momento, a oportunidade da Engenharia brasileira realmente ocupar um espaço no cenário mundial está aí, mas essa oportunidade pode ser aproveitada ou não.

Uma das razões atuais para desenvolver projetos no Brasil é o custo mais baixo, cerca de 50% inferior ao dos centros tradicionais nos EUA, Europa e Ásia.

Entretanto, essa vantagem competitiva (que não é tão vantajosa assim para os nossos profissionais) não vai se sustentar por muito tempo, principalmente com a crescente presença da China no cenário global. Se quisermos manter e ampliar espaços da Engenharia brasileira, teremos que competir com qualidade, eficiência, competência e mesmo com a (auto-atribuída) “criatividade” brasileira, se esta existir de fato.

Para isso é necessário termos engenheiros bem formados na concepção e desenvolvimento de novos produtos e tecnologias, competentes e permanentemente atualizados. Este perfil do engenheiro é bem diferente daquele que era apropriado para o setor até algum tempo atrás.

Nesse cenário é que entra o papel fundamental das universidades e escolas de Engenharia brasileiras, não apenas para formar, aprimorar e manter atualizados esses profissionais, mas também para participar e contribuir ativamente para desenvolver e aplicar inovação e tecnologias seja no produto/veículo, seja nos processos, seja na gestão organizacional. E isso não é novidade nenhuma, é o que ocorre nos países desenvolvidos.

De fato, a consolidação efetiva da presença brasileira no setor automotivo mundial vai depender de uma congregação de esforços e ações de basicamente três setores: o produtivo (empresas), o de ensino e pesquisa (universidades), e o governamental, este último por um lado fornecendo apoio e por outro retirando entraves.

O que estamos propondo é uma conjunção de esforços desses três setores para o bem do Brasil, gerando riquezas e melhorando a vida de todos nós. É necessário mobilizar universidades e centros de pesquisa de todo o país, identificando competências, promovendo elaboração de pesquisas e projetos em conjunto, viabilizando colaboração em cursos de formação, aprimoramento e atualização de engenheiros de forma a atender as necessidades em todas as regiões nas quais o setor está se desenvolvendo, evitando superposições e concorrências destrutivas, e produzindo sinergia.

É necessário promover a tão falada e pouco realizada “interação universidade-empresa”, para que esses dois setores possam trabalhar juntos. Isso não é fácil (se fosse, já teria acontecido há tempos), e requer a organização de fóruns e mecanismos de interação cuidadosamente administrados, até mesmo em termos de “linguagens e valores” – quem já se envolveu em algumas tentativas desse tipo de interação sabe bem do que estamos falando.

É também necessária a disposição da empresa em investir em P&D, em parceria com universidades. Finalmente, são necessárias ações dos governos, federal e estaduais, tanto para apoiar os novos projetos de pesquisa ou produtos e ações de aprimoramento profissional, através de órgão e programas de fomento/incentivo, quanto para retirar ou reduzir entraves burocráticos e taxas/impostos que prejudicam investimentos e competitividade do setor.

Esta conjunção de esforços, em grandes linhas, é o projeto que está em fase de gestação por iniciativa conjunta de três entidades: a AEA – Associação Brasileira de Engenharia Automotiva, a Universidade de São Paulo – Escola Politécnica, e o IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas.

Em breve, esperamos, este projeto começará a render bons frutos. E isso será uma grande novidade no cenário do setor automotivo brasileiro e, mais ainda, no mundial.

* Ronaldo de Breyne Salvagni

Professor Titular do Depto. de Eng. Mecânica da Escola Politécnica da USP
Presidente do Conselho Diretor da AEA
Coordenador do Centro de Engenharia Automotiva da EP-USP