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Ricardo Jose Rabelo    |   09/11/2021   |   Inovação e Indústria 4.0   |  

Manufatura Circular Digital

Este artigo é um pequeno sumário traduzido do relatório “The 2021 World Manufacturing Report - Digitally Enabled Circular Manufacturing”, publicado em outubro de 2021 pelo World Manufacturing Forum (WMF), do qual este professor participou da elaboração.

O WMF é uma organização associada ao Programa “IMS – Intelligent Manufacturing Systems”, apoiado pela União Europeia e ONU, e é também um órgão consultivo do WEF (World Economic Forum) para assuntos de manufatura. O WMF tem como Missão promover a inovação e o desenvolvimento do setor de manufatura visando aumentar a competitividade de todos os países.

Todos os anos o WMF escolhe um tema-base para focar e propor ações. Este ano o tema foi o da Economia Circular. Isto deveu-se à enorme e crescente relevância que as questões de sustentabilidade ambiental vêm ganhando em todas as esferas de discussões e decisões nas empresas, governos e sociedades civis do planeta. De fato, a transição para a manufatura circular vem sendo tomada como uma prioridade para muitos governos em todo o mundo.

Economia Circular

Economia Circular pode ser definida como um modelo ou paradigma de produção e consumo, que envolve compartilhar, alugar, reduzir, reutilizar, reciclar, reformar, reprojetar, recuperar, remanufaturar materiais e produtos existentes o maior tempo possível, visando minimizar os efeitos globais, como mudanças climáticas, perda de biodiversidade, desperdício e poluição. 

O modelo da Economia Circular surge em oposição ao modelo clássico linear básico de produzir, usar e descartar.

A economia circular está se tornando muito relevante à medida que cada vez mais empresas percebem o real valor e a potencial rentabilidade dessa nova e mais sustentável forma de produzir e fazer negócios. A economia circular baseia-se em diversas estratégias que ampliam o ciclo de vida de produtos com vistas à redução de resíduos. Além disto, está em linha com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, patrocinada pela ONU, pelo que se configura como um tema de grande relevância no escopo das energias renováveis.


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Para o desenvolvimento da Economia Circular inúmeros desafios precisam ser enfrentados, como a adoção de novos modelos de negócios, adequadas normas e leis, incentivos financeiros, cultura dos consumidores, entre outros. Por outro lado, há benefícios para as indústrias, como o aumento das oportunidades econômicas, a maior eficiência operacional através da redução de desperdícios, a criação de mais e melhores empregos, e uma contribuição para o problema das mudanças climáticas.

Há uma série de facilitadores para a transição na direção da manufatura circular. Os principais facilitadores no nível do consumidor incluem a consciência ambiental, o aumento da confiança e da transparência em relação aos prestadores de serviços, a conveniência e acessibilidade de produtos sustentáveis, e a alfabetização digital. No nível da empresa, os facilitado res incluem a demanda por produtos sustentáveis, as tecnologias digitais, as habilidades circulares, entre outros. No nível da cadeia de valor, há a necessidade de melhorar o compartilhamento de dados, de melhorar a infraestrutura e as redes de telecomunicações, e de padronizar requisitos.

Manufatura Circular

Como paradigma emergente no contexto do zero desperdício, a Manufatura Circular reforça o reaproveitamento de recursos na forma de materiais e energia através de sistemas sociotécnicos e do uso intenso de informações. Isso permite um gerenciamento mais efetivo de todo o ciclo de vida de um produto fabricado, via projeto de engenharia e fabricação, de serviços, manutenção e recuperação, sustentando assim futuros negócios.

Até o momento não há uma definição abrangente e universalmente aceita de economia circular, com muitos países usando suas próprias interpretações ou conceitos desenvolvidos por organizações relevantes. Isso pode afetar potencialmente uma ação internacional globalmente coerente e a aplicação consistente de diretrizes e políticas e sinergias entre ações de diferentes atores importantes. No entanto, a economia circular está rapidamente se tornando uma forte tendência e em rápida expansão à medida que cada vez mais empresas percebem nela também um valor adicional dessa nova maneira mais sustentável de fazer negócios.

A economia circular trata-se de um modelo regenerativo, no qual as indústrias encontram formas de usar materiais e bens por um período de tempo mais longo, criando mais de um ciclo de vida do produto, alimentado por novas tecnologias digitais e novos modelos de financiamento, criando-se bases para uma grande inovação: a economia circular para as indústrias. Esse tipo de inovação constitui o cerne do que significa ser humano: possibilitar a criação de riqueza e bem-estar da sociedade, mas com respeito ao planeta, apoiando sua sobrevivência para as gerações futuras.

As indústrias estão no centro desta nova revolução e seus esforços para mudar para modelos circulares. Além disso, as indústrias podem influenciar os hábitos de consumo e de descarte dos consumidores por meio de suas propostas de valor aos clientes, enfatizando e considerando o meio ambiente.

O futuro da manufatura começa a ver um desenvolvimento gradual em direção a uma indústria circular de alta qualidade, na qual a demanda por matérias-primas escassas é atendida por matérias-primas da cadeia de valor sempre que possível, considerando cinco metas estratégicas:

  1. Redesenhar produtos e seleção de materiais adequados para reutilização: A mudança para uma economia circular começa com a reformulação do projeto inicial e fabricação do produto, considerando a segunda reutilização de vida do produto ou a reciclagem dos materiais. Um exemplo disso pode ser a mudança de matérias-primas críticas, como metais e minerais, para matérias-primas geralmente disponíveis voltadas para produtos mais complexos.
  2. Conservar e recuperar recursos dos produtos usados e usá-los na fabricação de novos produtos: Cada vez mais os fabricantes estão aproveitando novas oportunidades oferecidas pela Internet das Coisas e, em alguns casos, mudando para um modelo mais baseado em serviços no processo. Nesse sentido, as indústrias devem desenvolver processos e sistemas para retomar e reformar bens para um segundo ciclo de vida. Aqui, a tecnologia de rastreamento pode revolucionar a capacidade delas de fazer isso. Eles precisam entender os fluxos de materiais para que possam planejar e facilitar o próximo ciclo, otimizar os processos de produção e melhorar o atendimento ao cliente.
  3. Desenvolver novas formas de produção: As demandas da Manufatura Circular implicam mudança em materiais, máquinas, produtos e processos, todos os quais impactam o projeto do trabalho. A futura economia global de produtos e serviços exige grandes volumes de matérias-primas e energia. Para isso, há uma necessidade de novos sistemas de produção que usem tecnologias de impressão sofisticadas e incluam produtos feitos de materiais adaptativos e de mudança de forma que possam prolongar sua vida útil.
  4. Implementar um modelo baseado em serviços para produtos circulares: Juntamente com o lado da oferta, a demanda por produtos e serviços circulares precisará aumentar para completar os casos de uso de negócios circulares. Empresas e governos desempenham um papel fundamental nisso, adotando aquisições socialmente responsáveis. No passado, as indústrias vendiam ativos aos clientes. No entanto, em um mundo onde as pessoas querem minimizar o desperdício, é melhor para os fabricantes manter a propriedade em vez de apenas vender um serviço para o cliente, alugando o produto. Para os clientes, isso tende a significar que eles recebem um melhor serviço com manutenção e qualidade. As indústrias, por sua vez, garantem que mantêm o produto em linha e em boas condições antes do próximo ciclo.
  5. Mudar de matéria-prima fóssil para renovável e eliminar o uso de produtos químicos tóxicos: A economia circular é um sistema industrial que nasce já na intenção e projeto dos produtos das indústrias. Substitui o conceito de fim de vida de um produto por restauração; muda para o uso de energia renovável, elimina o uso de produtos químicos tóxicos que prejudicam o seu reaproveitamento, e elimina resíduos através de um melhor projeto de materiais, produtos, sistemas e modelos de negócios.

As tecnologias digitais são um importante catalisador para alcançar a circularidade nas cadeias de valor de manufatura. Isso significa introduzi-las nos vários processos internos e externos das indústrias, realizando uma transformação digital da circularidade. Tecnologias habilitadoras da Indústria 4.0, como IA, IoT, Nuvem, Sistemas Ciberfísicos, entre outras, passam a ser tidas como aliadas estratégicas na realização da visão da manufatura circular neste início de século.

A manufatura circular digital visa suportar três objetivos fundamentais: eficiência de recursos, redução de desperdícios, e redução de emissões. As tecnologias digitais podem apoiar a transição para a manufatura circular no nível da empresa - desenvolvimento de produtos, produção e novos modelos de negócios - bem como no nível da rede (de empresas e parcerias). 

10 Recomendações para a Circularidade

Abaixo são listadas dez recomendações-chave sugeridas para promover uma mentalidade circular e incutir responsabilidade nos consumidores, criar políticas que abordem desafios relacionados a uma transição circular digital, construir uma força de trabalho proficiente com as habilidades e competências adequadas ao paradigma, e promover a colaboração para o estabelecimento de cadeias de valor circulares. Dentro de cada recomendação-chave há três medidas que detalham como isso pode ser feito.

1. Promover uma mentalidade circular na empresa que abrace as oportunidades da Economia Circular e o seu papel de viabilização de tecnologias digitais

  • Reforçar a real importância da transição circular é uma obrigação.
  • Definir novos indicadores-chave de desempenho relacionados à circularidade.
  • Educar os cidadãos sobre o consumo sustentável.

2. Reforçar a responsabilidade, proatividade e tomada de decisão consciente do consumidor

  • Reforçar a conscientização sobre a circularidade e o impacto ambiental do consumo.
  • Procurar adquirir produtos apenas de empresas sustentáveis.
  • Estimular a economia compartilhada para aumentar a utilização de produtos.

3. Permitir a cooperação entre as partes interessadas na construção de cadeias de valor circulares

  • Facilitar o compartilhamento de informações na cadeia de valor.
  • Promover o compartilhamento de padrões certificações e métricas comuns de sustentabilidade.
  • Envolver todas as partes interessadas relevantes na implementação das soluções tecnológicas e digitais.

4. Promover modelos de negócios e proposições de valor que abracem a circularidade

  • Incentivar modelos de produto-serviço.
  • Projetar produtos para facilitar a eventual recuperação, remanufatura e reutilização.
  • Explorar plataformas de simbiose industrial para comercializar resíduos e ativos excedentes.

5. Implementar globalmente políticas que reconheçam as tecnologias digitais, fundamental facilitador para a manufatura circular

  • Aumentar o compromisso com iniciativas globais para a economia circular.
  • Abordar a divisão digital global, especialmente em países menos desenvolvidos.
  • Configurar ambientes de testes reais para promover o aprendizado, a experimentação e a inovação de iniciativas circulares.

6. Promover medidas econômicas que impulsionam a transição para a economia circular e adoção de tecnologias habilitadoras

  • Elaborar esquemas de tributação para impulsionar a eficiência dos recursos e o uso de materiais secundários.
  • Incentivar empresas e investidores que investem em projetos circulares.
  • Fornecer incentivos aos consumidores para impulsionar o comportamento circular.

7. Treinar a força de trabalho para a manufatura circular digital

  • Atualizar habilidades e competências para trabalhar com tecnologias digitais.
  • Preparar a força de trabalho para ocupações verdes emergentes.
  • Reforçar o componente de sustentabilidade nos currículos escolares.

8. Usar dados para apoiar a transição circular no setor manufatureiro

  • Promover uma cultura baseada em dados nas organizações.
  • Explorar dados da cadeia de valor para impulsionar a inovação de produtos e produção sustentável.
  • Criar repositórios de dados compartilhados que facilitem o uso de dados confiável entre empresas.

9. Capacitar as PMEs em sua transição para a manufatura circular

  • Abordar a falta de informação sobre o potencial das tecnologias para alcançar a circularidade.
  • Fornecer capital e auxiliar na construção de mão de obra qualificada.
  • Aumentar o acesso a dados para apoiar objetivos circulares e alavancar novas oportunidades de negócios sustentáveis.

10. Abordar o possível impacto ambiental das tecnologias digitais

  • Realizar uma avaliação holística e realista do impacto tecnológico.
  • Alavancagem de modelos de negócios circulares para lidar com resíduos eletrônicos.
  • Promover políticas para enfrentar o impacto negativo não intencional das tecnologias no meio ambiente.

Conclusões

A economia circular é uma oportunidade para transformar a manufatura. As possibilidades de as indústrias transformarem a produção e seus modelos de negócios são profundas, alavancando mais inovações no setor, além de ser uma chance de criar um impacto positivo no meio ambiente. Por muitos anos, a forma "linear" de fabricação, que produz muitos resíduos, aliada ao consumo social implacável, colocou uma pressão sobre o meio ambiente, esgotando os recursos finitos e agravando a crise climática.

Esses efeitos negativos terão consequências duradouras, não apenas para a geração atual, mas também a futura. Abraçar a economia circular, portanto, é um passo na direção rumo a um futuro melhor e sustentável e não agressivo ao meio ambiente, reforçando o papel da manufatura como um importante motor para o bem-estar social.

Porém, a transição para a circularidade na manufatura não é uma tarefa fácil. Por outro lado, um dos facilitadores está na associação com a transformação digital. Em outras palavras, é usar as modernas tecnologias de informação, de (tele)comunicações e de manufatura com as aliadas dos processos produtivos e de logística associados à circularidade. No contexto da 4ª Revolução Industrial, abordar a perspectiva digital na manufatura acaba sendo um pré-requisito para explorar as oportunidades na economia circular e alcançar uma sustentabilidade ambiental duradoura. 

É essencial reforçar que todos têm uma participação na economia circular. A manufatura circular só é possível se empresas, consumidores, governos e sociedade civil em geral trabalharem juntas e mudarem sua mentalidade. Empresários das indústrias devem reconhecer que a circularidade afeta todos os processos produtivos, internamente e ao longo de todas as suas cadeias de fornecimento e de valor. Empresas de tecnologia devem ser incentivadas para desenvolverem soluções de apoio aos inúmeros aspectos da circularidade. 

Os consumidores devem perceber e serem incentivados na sua parte de responsabilidade de reciclagem, reutilização e consumo consciente. Educadores e trabalhadores devem garantir que as habilidades certas estejam presentes para permitir a transição para a manufatura circular. As políticas devem abordar a digitalização e criar as pré-condições legais e regulatórias adequadas para a manufatura circular. As instituições públicas e privadas de fomento, investimento e financiamento devem privilegiar aportes e incentivos a organizações ambientalmente responsáveis. Em suma, cada um de nós deve fazer a sua parte. A transição para a manufatura circular é uma das formas mais efetivas da engenharia e sociedade como um todo darem a sua contribuição para um planeta sustentável e ecologicamente correto.

O conteúdo e a opinião expressa neste artigo não representam a opinião do Grupo CIMM e são de responsabilidade do autor.
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Ricardo Jose Rabelo

Full professor at UFSC (Federal University of Santa Catarina), with a permanent position in the Department of Systems and Automation Engineering since 2000.
Senior manager of applied R&D projects.
Consultant.