Logomarca Indústria 4.0

Anatel e a Indústria 4.0: o papel das redes privadas

Por: Leonardo Euler de Morais e Egon Cervieri Guterres      30/04/2020

A base industrial brasileira, e, em particular, a indústria de transformação, já teve uma participação no Produto Interno Bruno (PIB) muito mais significativa. Além disso, ao longo dos anos tem se observado um peso cada vez menor desse segmento econômico nos resultados das contas nacionais. Em 2009, era da ordem de 15,3%. No ano de 2018 foi registrado 11,3% de participação, de acordo com o IBGE.

O cenário é deveras preocupante, em especial para os segmentos industriais intensivos em ciência, tecnologia e inovação. Mesmo para os segmentos de menor intensidade tecnológica e/ou conhecimento especializado, a desindustrialização (ou o retrocesso industrial), além de indesejada e prematura, traz consequências negativas para o desenvolvimento do país. Não por acaso, alternativas para fomentar o crescimento, a diversificação e a consolidação da estrutura industrial brasileira são motivos de estudos e pesquisas.

A ANATEL não está alheia a esse contexto; e nem poderia sê-lo. Exatamente por isso, tem empenhado esforços no sentido de contribuir para criar um ambiente regulatório favorável ao desenvolvimento e implantação de redes privadas de telecomunicações, notadamente aquelas utilizadas em aplicações de controle logístico, sensoriamento, monitoração, automação e demais necessidades da chamada indústria 4.0.

Como provimento de exemplo, vale mencionar a recente publicação da Resolução nº 719/2020  e da Resolução nº 720/2020, que aprovaram, respectivamente, os novos Regulamento Geral de Licenciamento (RGL) e Regulamento Geral de Outorgas (RGO). Trata-se de importante iniciativa para atualizar, simplificar e amenizar o impacto burocrático envolvido na prestação dos serviços de telecomunicações, especialmente no que diz respeito aos prazos e custos administrativos.


Continua depois da publicidade


Ademais, o RGO alterou uma série de normas da Anatel, entre elas o Regulamento de Uso do Espectro de Radiofrequências (RUE), de forma possibilitar a autorização do uso de radiofrequência, ainda que sem prévia destinação ao serviço pretendido, em área geográfica delimitada, desde que associada à exploração de serviço de telecomunicações de interesse restrito.

Tal iniciativa materializa o que se convencionou chamar por "outorga por polígono". Em apertada síntese, uma empresa pode requisitar faixas e canais de radiofrequência para desenvolver aplicações nos espaços geográficos onde realiza suas atividades – como, por exemplo, jazidas de mineração, plataformas petrolíferas offshore, plantas industriais, centros de distribuição, fazendas de agroindústria etc.

Para obter a outorga, é preciso prévia avaliação de viabilidade técnica, bem como observar os critérios e limites técnico-operacionais estabelecidos em Atos de Requisitos Técnicos da Agência. Por óbvio, a operação dessas estações de radiocomunicações não poderá causar interferência prejudicial.

Essas redes privadas, todavia, geralmente são instaladas em locais remotos ou utilizadas exclusivamente em ambientes confinados. No caso de soluções indoor, de baixa potência, mesmo o espectro empregado na exploração de serviços de interesse coletivo pode ser utilizado, desde que respeitadas as condições de uso e operação estabelecidos na regulamentação técnica complementar.

Dessa forma, oportuniza-se o desenvolvimento de aplicações da indústria 4.0 em virtualmente qualquer porção do espectro radioelétrico (sem a necessidade de prévia destinação), permitindo que se utilize das melhores características de cada uma delas (maior cobertura, menos ruído, bandas ultra largas, etc.), conforme as necessidades do projeto.

Femtocélulas

Outra iniciativa digna de destaque, também muito recente, diz respeito à revisão das regras aplicáveis aos equipamentos do tipo femtocélula. Esses dispositivos, de baixa potência e alcance local, funcionam como pequenos reforçadores dos sinais das redes de telecomunicações. São utilizados em muitos países para melhorar a experiência dos usuários dos serviços, em especial nos ambientes internos e locais de alta circulação de pessoas, como centros comerciais, praças de alimentação, universidades, aeroportos e espaços públicos em geral.

As novas regras de comercialização e uso (Resolução nº 718/2020) permitirão que femtocélulas sejam instaladas de forma mais flexível e desburocratizada. No caso das indústrias e de grandes clientes, as prestadoras e os usuários terão mais facilidade para contratar redes privativas e personalizadas, para atender às necessidades por conectividade e soluções específicas da indústria 4.0. Em países como os Estados Unidos, que já as utilizam há algum tempo, as prestadoras empregam centenas de milhares desses equipamentos especificamente para esse tipo de negócio.

Assim, mediante as duas iniciativas regulatórias aqui mencionadas, oferece-se à indústria a possibilidade de desenvolver suas próprias soluções, por meio da outorga de radiofrequência no polígono de operação; ou contratar uma rede privada com a prestadora de serviços de telecomunicações de sua escolha.

Para além disso, cabe ainda mencionar a revisão e atualização das regras de certificação e homologação de produtos, que proporciona meios mais simples, rápidos e menos burocráticos para a certificação dos módulos de telecomunicações utilizados nos equipamentos empregados nas soluções de indústria 4.0. Os novos regramentos foram consignados na Resolução nº 715/2019, que trouxe também grande flexibilização na sistemática de avaliação da conformidade dos produtos e equipamentos para telecomunicações, sem no entanto olvidar da necessária aderência às normas e padrões de segurança e proteção de usuários e consumidores.

Espectro de 5G

Por fim, são cada vez mais recorrentes demandas relacionadas à destinação de espectro do Edital do 5G para as redes privadas. Consoante proposta submetida à Consulta Pública, encerrada em 17/04, o próximo edital de direito de uso de radiofrequência, inclui a utilização da banda de 3,7 a 3,8 GHz como um espaço de transição entre as redes móveis terrestres e as redes satelitais (a chamada "banda de guarda"). Muito embora existam dificuldades em explorar serviços de interesse coletivo nessa faixa de 100 MHz, é possível utilizá-la, em grande medida, para aplicações de baixa potência e/ou em ambientes controlados. Isso se equipararia, em certos aspectos, às faixas "reservadas" estabelecidas em alguns países para a indústria 4.0, ao menos na parte técnica.

Outrossim, geralmente os equipamentos de baixa potência, para aplicações locais, seguem as regras dos Equipamentos de Radiocomunicação de Radiação Restrita (como Wi-Fi, Bluetooth, alarmes e controles remotos – que usam espectro de uso comum – e, agora, até as femtocélulas, que utilizam espectro outorgado). Nesse caso, o único requisito regulatório a ser endereçado é o de certificação (ou declaração de conformidade, conforme o caso) pelo fabricante do equipamento, pois o equipamento é de livre utilização, por qualquer interessado. No caso de estações transceptoras de maior alcance e potência, por outro lado, a outorga por polígono pode se mostrar a solução a ser procurada. De toda sorte, como mencionado, a questão será amadurecida tanto no âmbito da licitação quanto da regulamentação.

Em todas essas iniciativas, é importante frisar, a lógica norteadora sempre foi a de se permitir o uso mais eficiente e racional do espectro, para, de modo compartilhado e coordenado, se evitar a ociosidade e o desperdício desse recurso limitado, em benefício do maior número possível de interessados.

As medidas tomadas pela Anatel certamente contribuirão para a viabilização de soluções que proporcionem maior competitividade e ganhos de produtividade para a indústria brasileira. Afinal, tais soluções passam por conectividade digital, fator de redução de custos e de aprimoramento do controle sobre o processo produtivo, aspectos necessários à transformação das plantas fabris.

Portanto, é fundamental que a Agência continue a aperfeiçoar os arranjos regulatórios que maximizem as possibilidades decorrentes da conectividade digital como fator de produção essencial para a indústria 4.0. Cuida-se de um norte importante para que a indústria de transformação resgate maior protagonismo na economia brasileira

*O conteúdo e a opinião expressa neste artigo não representam a opinião do Grupo CIMM e são de responsabilidade do autor.

Gostou? Então compartilhe:

Leonardo Euler de Morais e Egon Cervieri Guterres

Leonardo Euler de Morais e Egon Cervieri Guterres

Leonardo Euler de Morais é presidente da Anatel e Egon Cervieri Guterres é especialista em regulação de serviços de telecomunicações da agência